segunda-feira, 28 de junho de 2021

Game Queens: a influência das drag queens na indústria de jogos | Tecnoblog

As drag queens invadiram o mundo dos games (Imagem: Vitor Pádua / Tecnoblog)

São pouco mais de onze horas da manhã e Wenner Pereira acabou de acordar. Na madrugada anterior, ele fez uma live de mais de quatro horas de duração no Facebook, rede social da qual é parceiro e onde acumula mais de 760 mil seguidores. Os melhores momentos dessa transmissão e das outras que faz quase diariamente vão para o seu canal de YouTube, onde também conta com um público fiel de mais de 830 mil inscritos.

Wenner é um dos principais nomes do cenário gamer brasileiro, mas é provável que você o conheça como Samira Close, a drag queen que fez fama na internet fazendo streaming de jogos com muito bom humor. Hoje, consolidada como um nome que a indústria de videogames não tem como ignorar, Samira veio para ficar.

Ela, porém, não é a única. Muitas drags, de personalidades e públicos diversos, vêm se destacando no cenário com um trabalho profissional, bem-feito e representativo. Nomes que têm mostrado como a mistura inusitada entre o mundo das maquiagens e das perucas com o dos consoles e personagens não poderia ser mais frutífera.

A arte drag não é novidade no Brasil. Há anos, performers dos quatro cantos do país fazem um trabalho revestido de glitter, purpurina e muita coragem para mostrar sua arte mesmo diante de uma sociedade ainda tão preconceituosa. Nomes como Miss Biá, Silvetty Montilla e Marcia Pantera abriram caminho para a geração de drag queens que vemos agora, e que explodiu no Brasil junto com a crescente popularização do programa RuPaul’s Drag Race – comandando pela também lendária drag RuPaul.

Para muito além das perucas e dos salto altos, porém, essa nova geração de drag queens também cresceu lado a lado com a popularização dos videogames e o advento da internet, cultivando paixões, hobbies e talentos como outros jovens.

Muitas delas tiveram contato com jogos desde pequenas, crescendo cercadas por influências tecnológicas e produtos da cultura pop. Então, nada mais natural que levassem essas referências para suas vidas adultas, e que, assim como outros milhares de gamers, estendessem essa paixão também para o seu trabalho.

Diante disso, não é de se admirar vermos drags trabalhando com jogos eletrônicos. Mas é de se admirar, porém, que ainda falemos tão pouco sobre isso, tendo em vista a contribuição e representatividade de seus trabalhos em uma indústria que movimenta números tão altos, mas que ainda vive casos de machismo e preconceito regularmente. “A gente chegou muito longe e tudo parece estar muito grande, mas é grande na nossa bolha”, reflete Lola Dvil, drag parceira da Twitch, em entrevista ao Tecnoblog.

Mas afinal, que tipo de trabalho essas drag queens desenvolvem?

Hoje, dentro e fora do Brasil, temos inúmeras drags ganhando projeção na comunidade gamer, sejam como streamers, game designers ou cosplayers. Samira Close, inclusive, foi uma das pioneiras por aqui, quando começou a transmitir suas jogatinas há oito anos.

A profissional, que criou seu alter ego algum tempo depois que embarcou nas streams, conta que no começo a comunidade LGBTQIA+ do cenário era muito pequena. “Não que essas pessoas fizessem isso propositalmente, mas era um humor para hétero assistir. E quando eu entrei, isso me incomodava. […] O lance é que eu queria criar uma comunidade; fosse querendo usar peruca, com barba, sem barba, passando maquiagem… Mas que fosse uma comunidade entre pessoas iguais. Foi aí que eu assumi realmente o papel de streamer”, conta.

Samira, que se tornou um nome de peso no universo do Free Fire, também joga games como LoL, Dead by Daylight e Resident Evil Village em seu canal. Seus vídeos, aliás, são sempre muito bem-humorados, atraindo um público variado, que também abrange muitas crianças.

Samira Close (Imagem: Reprodução / JR Sander)

Wenner Pereira teve uma infância bastante pobre no Ceará, onde vivia com sua família que sobrevivia da costura. Aos 16 anos, com o dinheiro que economizou ajudando a mãe no ofício, conseguiu comprar seu primeiro computador.

Descobriu o streaming algum tempo depois, e de tanto participar das lives de uma amiga acabou ouvindo àqueles que diziam que ele deveria ter seu próprio canal. Na época, já trabalhando em banco, ingressou nesse universo com o pouco tempo livre que tinha, torcendo para que ao menos conseguisse pagar a conta da internet.

Graças ao público que começou a acompanhá-lo, passou a ter algum retorno financeiro, se montando pela primeira vez nas transmissões. Ao ver o impacto e repercussão de sua ação, decidiu se assumir como a drag Samira Close, tornando-se uma pioneira na comunidade.

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Já há alguns anos no cenário, Amanda Sparks é outro nome conhecido da indústria. Famosa por seu trabalho como cosplayer, agora em pausa por causa da pandemia, a drag também é uma game designer com inúmeros jogos mobiles lançados.

Com um trabalho focado em pixel art, estilo que adotou a princípio pensando em uma boa performance para os dispositivos, mas que com o tempo se mostrou também mais fácil para alterações, ela traz um diferencial na narrativa de seus games: é a própria heroína de suas histórias.

Em Shade Forest, um de seus principais jogos, ela é uma drag queen que vive grandes aventuras e topa com perigosos vilões ao longo do caminho. Em Spikes on High Heels, Amanda busca se tornar a maior jogadora de vôlei do mundo (sem descer do salto), enfrentando adversários em partidas bastante emocionantes. Já em Double Dragqueens, ela é capturada, precisando que algumas amigas venham em seu socorro para salvá-la.

A representatividade que traz em seus jogos é algo bastante raro de se ver na indústria. E exatamente por isso, enfrenta problemas de visibilidade para chegar em outros públicos. “Ao mesmo tempo em que eu quero fazer esses jogos, eu também quero ganhar dinheiro com eles. E às vezes eu me pergunto se eu pegasse qualquer um deles e mudasse totalmente a sua roupagem, tirando toda a temática LGBTQIA+, se ele faria mais sucesso e teria um alcance melhor”, desabafa a designer.

Amanda Sparks (Imagem: Reprodução / Instagram Amanda Sparks)

José Henrique é carioca, mas devido às constantes mudanças de cidade, se aproximou dos videogames ainda pequeno. Autodidata como game designer (a pós-graduação no Senac veio apenas anos depois), em 2005 criou um fangame de luta que lhe rendeu um emprego de três anos na área.

Tempos depois, foi morar em São Paulo com a amiga Penelopy Jean, que conheceu em um fórum de desenhos animados e com quem começou a se montar. Já como perfomer de Amanda Sparks, montou com ela e Tiffany Bradshaw o trio Milano, com quem se apresentou em diversos estados brasileiros.

O grupo chegou ao fim, mas sua história com os games só estava começando. Desde 2014, com a repercussão de seu jogo Flappy DragQueen (uma versão do game Flappy Bird), mergulhou fundo na criação de jogos, passando a se colocar como a protagonista de suas criações.

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Quando o assunto é público-alvo, não podemos deixar de falar também de Lola Dvil, drag que faz lives e mescla uma audiência bastante curiosa em sua conta da Twitch. A streamer, mesmo apaixonada por games desde pequena, inseriu esse universo em suas transmissões aos poucos, levando o mundo dos videogames para uma turma que a acompanhava por seus vídeos de beleza e comentários sobre RuPaul’s Drag Race.

Com o intuito de variar seu conteúdo, ela começou apresentando esse universo por meio de streams de Fall Guys. “Isso fez com que muita gente que não tinha mais contato e que jogava apenas quando era pequeno, visse que existiam jogos que eram simples, dos quais você não precisa nem de muita coordenação”, explica.

Hoje, com 7,7 mil seguidores na conta e sendo uma das embaixadoras da Pride Cup, campeonato de eSports voltado para a comunidade LGBTQIA+ organizado pela Gamers Club, ela mistura makes e mundo drag com partidas de LoL e jogos de sobrevivência (como Stranded Deep e The Forest) em suas transmissões.

Lola Dvil (Imagem: Reprodução / Instagram Lola Dvil)

Morador de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, Alcides Furlin é quem dá vida à drag Lola Dvil. O nome, inspirado na personagem Cruella De Vil, era também seu nick para jogar online na juventude, época em que depois dos jogos da Nintendo, eram os MMORPG que faziam a sua cabeça.

Já adulto, cursando Engenharia Civil, se viu, no entanto, maravilhado por um outro mundo: o da cena drag de Porto Alegre. Fã de RuPaul’s Drag Race, foi tragado por aquele universo, e se viu dando vida à Lola Dvil, um alter ego que unia suas duas grandes paixões.

Seguiu por algum tempo nos palcos, mas em 2019 entrou para o mundo das lives. O começo não foi fácil, mas depois de migrar para a Twitch em 2020 – plataforma da qual se tornou parceira – viu seu trabalho ser aos poucos reconhecido.

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Falar sobre a indústria de jogos eletrônicos, sem falar sobre a dificuldade e preconceito que determinados profissionais encontram para adentrá-la é, infelizmente, ainda impossível. Ainda que muitos avanços tenham sido feitos, e que marcas, times e patrocinadores sejam cada vez mais conscientes, mostrando ações efetivas de inclusão e respeito, é notório como continuamos enfrentando um problema estrutural dentro da própria comunidade.

Para Samira Close, que quando chegou no mundo gamer, percebeu o quão machista e elitista esse universo era, as coisas se tornaram mais complicadas depois que apareceu como drag queen em frente à câmera. Além dos xingamentos que recebeu, o que não faltaram foram ameaças de morte. “Você ser um homem gay, de barba e peruca, em um lugar desses é como se você fosse um bicho, um monstro”, lamenta a streamer ao Tecnoblog.

“Eu lembro que quando cheguei montada na BGS pela primeira vez foi um choque, porque você pode até ser gay, mas é como se não pudesse falar para ninguém, tendo que ficar caladinho no seu cantinho. Eu cheguei bem espalhafatosa, de peruca, barba… E as pessoas literalmente levantavam de onde eu sentava”, conta.

Lola, no começo de suas lives, também sofreu uma série de ataques homofóbicos que derrubaram sua conta. Ela só teve paz quando migrou para a Twitch, e conseguiu, além de um público que acompanhava o seu trabalho, ajuda da plataforma para se proteger de situações como essa.

Seus casos, infelizmente, não são isolados, e é preciso sim reeducar a comunidade, desconstruindo preconceitos tão enraizados. A luta por espaço e respeito é diária, e vale lembrar que a simples existência dessas drags na indústria, ocupando posições de prestígio, influenciando pessoas e servindo como inspiração para novos profissionais, por si só já é uma declaração de que determinados comportamentos não serão mais tolerados.

“Quando alguém alcança, é meio como se todo mundo alcançasse um pouco e tivesse mais chance [de chegar lá]”, reflete Lola, esperançosa, sobre o futuro.

Para quem acha que a presença de drag queens na indústria de jogos é uma contribuição passageira, talvez seja hora de olhar com mais atenção para o que tem acontecido no cenário. Fora do Brasil, além de nomes como Kitty Powers, profissional que fundou sua própria desenvolvedora de jogos, há inúmeras drags adentrando o mundo do streaming, como Deere (42,9 mil seguidores), BiqtchPuddin (26,7 mil seguidores) e Hashtag Trashly (15,2 mil seguidores).

Há, inclusive, grupos dentro da Twitch que procuram unificar o trabalho dessas performers, como é o caso da lista Stream Queens, que até o fechamento desta reportagem contava com 85 artistas gamers inscritas.

Além disso, como personagens de jogos, as drag queens também têm tudo para continuarem marcando espaço por aqui, especialmente com a chegada do jogo mobile de RuPaul’s Drag Race. Ainda sem data de lançamento, ele já tem uma página oficial, na qual é possível se inscrever para receber notícias.

Que o futuro tem tudo para ser colorido, divertido e bastante profissional para essas artistas no mundo dos games, não nos restam dúvidas. Porém, esperamos que mais tolerante e respeitoso também.

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