Em meio a fama dos jogos Battle Royale ou de mundo aberto, com livre escolha do que fazer, ainda há espaço para games lineares de um só jogador, desde que estes cumpram um propósito básico: manter o jogador focado, a cada passo, em tudo o que acontece. E é bem isso que entrega A Plague Tale: Innocence, que apesar de problemas com o gameplay, traz uma narrativa incrível ao contar a jornada de dois irmãos em um dos períodos mais terríveis da história.
O jogo foi desenvolvido pelo Asobo Studio e publicado pela Focus Home Interactive. Disponível para PC (Windows), PS4 e Xbox One, A Plague Tale traz legendas em português e é extremamente focado em história. O modo furtivo, ou stealth, é sua principal característica, apesar de alguns momentos de ação, mas este peca pela mecânica um tanto travada de movimentação dos personagens. Além da narrativa, outro ponto alto são as hordas de ratos, que podem te devorar em segundos.
Confira tudo isso, em detalhes, neste review.
A Plague Tale: Innocence se passa na França do século XIV e conta a história de coragem da jovem Amicia de Rune. De família nobre, ela vê o local onde mora ser invadido pelo exército inglês, que mata a todos pelo caminho. Tentando entender o que estava acontecendo, Amicia busca socorro com a mãe, Beatrice, uma incrível alquimista, que trabalhava em uma cura para o pequeno Hugo (de 5 anos), o caçula dos De Rune, nascido com uma doença misteriosa.
Ao ver pela janela a também chegada dos cavaleiros da Inquisição, Beatrice imediatamente pega Hugo nos braços e ordena que Amicia a siga, com cuidado, pelos jardins da propriedade, agora entregue à destruição. Durante a fuga, Amicia e Hugo (que antes nunca tinha saído do seu quarto) ficam horrorizados ao ver os corpos das pessoas que amavam e cuidavam deles caídos pelo chão.
Quando estavam prestes a conseguir fugir, o trio foi cercado pelos inquisidores e Beatrice não pensou duas vezes: entregou Hugo à Amicia e disse que ela deveria protegê-lo a todo custo e levá-lo a um amigo e monge alquimista, numa cidade próxima. Ele saberia o que fazer para ajudar o menino.
Mesmo sob protesto dos filhos, que não queriam deixá-la, Beatrice os empurra para fora da propriedade e tranca o portão. Assim ela garantiu, ao menos por hora, a segurança dos filhos, e entregou a si própria ao destino que a aguardava com a chegada dos guardas.
E é assim que começa a jornada de sobrevivência da, ainda por se descobrir, valente Amicia e seu pequeno irmão Hugo.
A primeira coisa que se aprende da relação entre os dois herdeiros De Rune é que não havia bem uma relação entre ambos. Como Hugo mal saía do quarto por conta da tal doença, mesmo ela não parecendo contagiosa, o menino tinha pouco ou nenhum contato com sua irmã mais velha.
Amicia, por outro lado, é uma jovem (entre seus 15 e 17 anos) muito ativa, adora brincar de exploração, e é muito boa com seu estilingue, que lhe será extremamente útil durante sua jornada.
Quando tudo vira caos e destruição, e os dois se veem sozinhos fugindo da única vida que conheciam, é que a verdadeira relação de confiança e conflito entre Amicia e Hugo começa a se desenvolver.
Hugo, como dito antes, é uma criança de 5 anos que não se conforma em estar longe da mãe (a pessoa que mais tinha contato). Portanto, há de se imaginar como é confuso para ele tudo o que está acontecendo.
Há momentos em que ele será uma doce criança e obedecerá a irmã sem questionar. Existirão também ocasiões de rebeldia, em que ele correrá sozinho no meio do perigo (sem ter noção disso), enquanto Amicia tentará desesperada encontrá-lo antes que o pior aconteça.
Lidar com Hugo, no jogo, é bem como uma criança na vida real. E com o tempo ele aprenderá a respeitar mais a irmã (quando quiser também), mesmo se sentindo contrariado às vezes.
Amicia, por outro lado, tenta entender porque os ratos estão invadindo em massa as cidades e zonas rurais, espalhando uma praga que mata as pessoas em poucos dias (uma clara alusão à peste negra), ou mesmo o porquê da Inquisição estar perseguindo o seu irmão.
Ela, então, se vê numa situação interna conflitante: está apavorada, mas não tem como parar e sentir pena de si. Ela precisa engolir o medo e aprender a lutar, à sua maneira, para salvar o irmão. Com isso, Amicia precisa amadurecer rápido, ser mais firme e focada, para proteger Hugo. Ele jamais sobreviveria à tudo aquilo sozinho, não naquela idade.
Algo importante a dizer: o game é, em essência, stealth. Amicia será morta se for atingida com apenas um ataque. Portanto, seja sorrateiro. Use seu estilingue para abater guardas, mirando na cabeça deles, e quebre vasos e acerte objetos metálicos para distraí-los. Ah, e não deixe Hugo sozinho por muito tempo. Ele começa a se desesperar, gritar por você, e acaba sendo descoberto pelos inimigos.
Os principais antagonistas de A Plague Tale, e destaque em todas as peças promocionais do jogo, são os ratos. E não falo aqui de algumas dezenas deles, mas sim de milhares. Um verdadeiro mar de roedores, em alguns momentos do gameplay.
Na Idade Média, durante a pandemia da Peste Negra (1343-1353), que dizimou quase 200 milhões de pessoas entre a Europa e Ásia, os roedores foram os grandes vilões. A doença era transmitida para os humanos pelas pulgas dos ratos pretos.
Em A Plague Tale, a praga é transmitida por meio da mordida desses ratos. No universo do jogo, ser mordido era uma sentença de morte. A vítima sofreria por dias antes de sucumbir e ainda poderia transmitir a doença para outras pessoas.
Por isso, ao andar pelas cidades, no controle de Amicia, é comum ver casas e outras construções com um “X”, pintado em branco, em portas e janelas – indicando que ali existem pessoas contaminadas largadas para morrer. Muitos doentes também eram executados e seus corpos deixados pelas ruas.
No game, o real perigo dos ratos é quando eles se reúnem às centenas, de uma só vez, e atacam como um enxame. Se eles te pegarem desprevenido é morte certa. A única forma de afastá-los é com a luz. Eles odeiam fogo ou qualquer tipo de luminosidade. Use sempre isso a seu favor.
Com o tempo, Amicia aprende também que pode usar os roedores “como aliados”, apagando focos de luz, em locais estratégicos, e direcionando a horda contra os inimigos. Inclusive, essa é uma forma bem eficaz de eliminar guardas, já que a jovem não tem condições de entrar em combate direto com eles e nem sempre dá para derrubar um cavaleiro (vestindo armadura pesada) com um estilingue.
Felizmente, Amicia não estará sempre sozinha, ou só com o irmão, em sua jornada. Ao longo da história, ela encontrará alguns aliados, nos piores momentos possíveis (diga-se de passagem), que irão ajudá-la. Eles ou combinarão táticas com ela para abater inimigos e superar obstáculos, ou ensinarão novas habilidades à jovem.
Todas as habilidades aprendidas pela garota têm um custo de criação, pois geralmente possuem base alquímica. Por isso, por mais que o jogo seja linear, não deixe de olhar a volta em busca de recursos. Também é possível melhorar a qualidade do seu estilingue (única arma de Amicia) e aumentar a bolsa de itens para carregar mais recursos e munição. É claro, você também precisará coletar matéria-prima para isso.
O nível de progressão das habilidades é bem interessante e segue uma curva de aprendizado que respeita a cronologia dos acontecimentos. Em resumo: só aparecerá no menu, para desbloquear e usar, habilidades úteis a partir de um determinado ponto do gameplay.
Ter que passar por um esgoto, infestado por ratos, com pouca luminosidade, guardas na sua cola e, ainda, proteger seu irmãozinho rebelde já é preocupante o suficiente e não pode piorar. Certo? Errado!
Ouso dizer que se não fosse pelo horror que é se acostumar com a movimentação meio travada e robótica da protagonista e a inteligência artificial (com amnésia) dos aliados, A Plague Tale seria um jogo 9/10 – na minha opinião. Realmente, o game é incrível… Assim que você aprender a lidar com o ódio do gameplay.
Em se tratando de um estúdio independente, com recursos mais limitados que as grandes desenvolvedoras de AAA, já era esperada a possibilidade de alguns aspectos do gameplay não serem tão bem polidos. Isso aconteceu na série Uncharted (exclusiva da Sony), por exemplo, que é um ótimo exemplo de movimentação de personagens, imagina num estúdio pequeno.
Mesmo assim, acredito que um pouco mais de trabalho amenizaria a sensação de estar controlando uma protagonista saída de um jogo do início da geração passada, que mal consegue dar uma volta, em torno de si mesma, sem parecer que está fazendo um “moonwalk”, por exemplo.
Há ocasiões, que não serão poucas, em que Amicia precisará correr, pular obstáculos, agachar e entrar em ruelas para escapar de alguma perseguição. E é aí que o desespero se instala. No início, até se acostumar na marra com os controles, aceite que você morrerá algumas vezes enquanto decora o caminho. Felizmente, a linearidade deste título te ajuda nessas horas, já que há basicamente apenas um caminho a se fazer.
Os ângulos da câmera também atrapalham, em certos momentos. Algumas vezes morri por estar fazendo uma ação, na minha frente, e nada no jogo me avisou que um inimigo estava vindo pelas minhas costas. Não dá para tentar rodar a câmera rapidamente para não ser surpreendido. O timing dessa rotação simplesmente não coincide com a possibilidade de escapar ou de armar o estilingue, em tempo, para contra-atacar.
Próximo da metade do jogo, há uma transição (totalmente dentro do contexto da história) do gameplay, que antes era essencialmente furtivo, para quase um combate à longa distância. Esse modo híbrido entre stealth/ação acompanha o desenvolvimento psicológico de Amicia. Ela percebe, com tudo o que está passando, que apenas se esconder não resolverá seus problemas e, muito menos, será o suficiente para manter a si e o irmão vivos.
Tirando o longo tempo de aceitação com os controles, A Plague Tale não é um jogo difícil de aprender o que fazer. Por mais que ele queira dar uma sensação de terror de sobrevivência, ele é mais suave que isso. Não é necessário ficar tão neurótico com a possibilidade de faltar recursos para uma bomba incendiária, por exemplo.
Quando for realmente necessário, o próprio jogo colocará próximo de você alguns dos itens que precisa. Basta olhar a sua volta. Isso facilita bastante o processo e pode ser algo positivo para alguns jogadores, ou meio frustrante para outros que buscavam um desafio maior.
A essa altura, você deve estar imaginando que o game, com todos esses tropeços nos controles, será um fardo por ter que proteger Hugo o tempo todo. Não é bem assim. O menino não tem como lutar por conta própria, na maior parte do tempo, mas ele ajudará Amicia a resolver alguns puzzles e, tirando os momentos de rebeldia necessários para a narrativa, ele automaticamente irá segurar na mão da irmã e ir onde ela for. A não ser que você ordene que ele fique parado em algum lugar.
Antes de mudar de tópico, gostaria de deixar mais uma crítica à jogabilidade. Há momentos em que é necessário trocar rapidamente de habilidades e fazer ações diferentes em sequência, como (vou enumerar para ficar mais claro):
Todas essas ações têm que ser feitas em segundos, se não quiser que Amicia seja abatida pelos guardas ou pelos ratos (ou os dois). O problema é o tempo que se leva entre ter que tirar o foco da sua fuga e ativar o menu radial (no caso dos consoles), escolher a habilidade, mirar e torcer para acertar. Daí você refaz o processo para a ação seguinte.
Normalmente, este não seria um problema. Não é difícil isso acontecer em jogos de ação/aventura e eu, por exemplo, lido bem com essas transições. Mas vamos lembrar que Amicia se move como um robô dançando moonwalk, a câmera é péssima e a IA dos seus aliados é, geralmente, burra.
Se enquanto estiver escolhendo o que fazer no menu, você correr por acidente para um lugar com mais ratos, provavelmente terá que recomeçar aquela parte porque algum aliado foi pego por um guarda, ou correu para cima de um monte de ratos e virou jantar.
O jogo foi testado num PlayStation 4 normal e, mesmo assim, é de se notar um capricho nos cenários, que variam de belos campos decorados com coloridas árvores e flores, a locações mais sombrias, como castelos e cidades entregues ao caos.
A atmosfera criada em momentos de maior tensão, ao ter que passar por lugares escuros e fugir de ratos, é bem parecida com a de um survival horror. O “medo” só é quebrado quando você lembra que está jogando uma versão “soft” disso.
As únicas quedas de frames que percebi aconteceram durante as horas de ratos. Alguns deles, quando a câmera permitia ver um pouco mais de perto, não estavam tão bem acabados e faltavam algumas texturas. Mas, no geral, é um jogo bem bonito.
A dublagem é muito envolvente, especialmente a de Amicia e Hugo. Você consegue sentir a aflição da jovem em várias ocasiões, da mesma maneira que dá um leve sorriso em todos os momentos de doçura e inocência de Hugo.
A Plague Tale: Innocence traz uma narrativa incrível ao contar a história de uma irmã, que se vê perdida num mundo caótico, mas precisa criar forças em meio a vários traumas para proteger o pequeno irmão. A relação que se desenvolve entre os dois, ao longo dos 17 capítulos do game, é cativante e, às vezes, dá vontade de dar um abraço nos dois e dizer que vai ficar tudo bem.
Acredito que nem os controles sofríveis e a movimentação travada do gameplay deveriam tirar de ninguém a vontade de encarar essa jornada com Amicia. Você sequer percebe direito o tempo passar (leva cerca de 20 horas para fechar) e só quer saber como a história termina. Mas é claro, isso se você for do tipo de jogador que gosta de narrativa e jogabilidade furtiva. É um game mais voltado para este tipo de público, mas que (quem sabe) pode agradar a quem procura algo diferente também.
Nenhum comentário:
Postar um comentário