sábado, 1 de agosto de 2020

Não entendi na escola, mas aprendi no YouTube | Educação | Tecnoblog

A estudante de Publicidade e Propaganda Emely Monteiro, 19, recorre ao YouTube quando precisa aprimorar outro idioma ou para se aventurar num novo hobby. Na plataforma, ela diz já ter estudado inglês, espanhol, matemática, marketing digital e até receitas. Tudo isso sem pagar nenhum centavo.

Com a faculdade, o YouTube se tornou uma extensão da sala de aula, já que muitos conceitos aprendidos no ambiente tradicional não ficam claros. E a pandemia motivou ainda mais o uso da plataforma no dia a dia acadêmico. “Com aulas online, surgem muitas dúvidas que nem sempre os professores, por conta da distância, conseguem responder. Por isso, o YouTube acaba sendo a melhor saída”, relata Monteiro.

YouTube / Christian Wiediger

O mesmo acontece com Larissa Palmeira, 20, que estuda fisioterapia e utiliza os vídeos como complemento da graduação. “Já aprendi várias matérias do meu curso, desde genética, embriologia e até anatomia”, diz. Para ela, a oportunidade de estudar através do site sem pagar é muito benéfica, principalmente considerando que muitos estudantes não podem pagar por aulas particulares.

O YouTube vem influenciando o modo de aprender e especialistas em educação são unânimes em dizer que o site contribui para o aprendizado. Ademais, pesquisas revelam que há apelo e aprovações daqueles que utilizam o YouTube como extensão da escola e também por quem deseja aprender algo por conta própria.

Emely e Larissa não estão sozinhas. Dados evidenciam que muitos brasileiros acessam os canais para ampliar o conhecimento. A pesquisa mais recente sobre o tema (Viewers Google/Provokers), de 2018, revela que 9 em cada 10 brasileiros usam o YouTube para estudar.

Os números demonstram que 93% utilizam o YouTube para aprender a fazer pequenos reparos em casa, 87% buscam por desenvolver habilidades profissionais, enquanto 73% querem dicas de esporte e de fitness.

“Se olharmos para o YouTube como uma gigantesca biblioteca, contendo todos interesses imagináveis, seu potencial para a aprendizagem é muito alto”, analisa Marcelo Sabbatini, que é professor do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Como recurso de aprendizagem informal, sim, ele possibilita o aprendizado”.

Outro estudo da Pearson, uma empresa de educação digital britânica, revela o impacto da educação fora das salas de aula. A Geração Z (nascida entre os anos 90 e 2010) classifica o YouTube como o meio preferido para se aprender algo, revela a pesquisa.

Para esse grupo, o site de vídeos do Google supera palestras, atividades com colegas, aplicativos e até livros. No entanto, os professores continuam liderando como preferidos.

Sabbatini salienta que o YouTube não pode ser considerado uma plataforma de ensino (ou educação), tendo em vista que o processo pedagógico é bem mais amplo, formado por conexões entre teoria e prática, interações entre professores e colegas, além de avaliações. “Mesmo cursos bem estruturados vão exigir outras ferramentas e ações para que proporcionem uma experiência completa de aprendizagem”, ressalta.

No Brasil, canais dedicados ao vestibular (incluso ENEM), curiosidades e educação financeira estão entre os preferidos. O Manual do Mundo, por exemplo, lidera essa lista com 13 milhões de inscritos. Em seguida aparecem: Nostalgia (13 milhões), Me Poupe! (5,2 milhões), Descomplica (3,1 milhões), Professor Noslen (2,9 milhões), Nerdologia (2,9 milhões) e Marcos Aba Matemática (2,9 milhões).

Em entrevista ao Tecnoblog, Iberê Thenório, criador e apresentador do Manual do Mundo, conta que o canal — que virou empresa — surgiu da ideia de “ensinar as pessoas a fazerem as coisas em casa”. Iberê conta que o objetivo era ampliar o conhecimento, porém, ele e a esposa, Mari Fulfaro, que também é apresentadora no canal, não esperavam essa proporção.

Mari Fulfaro e Iberê Thenório / Imagem: Mktmix

“Tudo começou quando a gente veio de Piedade (interior de SP) para São Paulo (Capital) e vimos que as pessoas acionavam o seguro para trocar pneus do carro e fazer pequenos consertos em casa”, relata. “Em Piedade, todo mundo sabia fazer isso e ficamos impressionados com essa coisa de chamar alguém para fazer”.

Considerado o maior canal de ciência e tecnologia do Brasil, o Manual já impacta a vida de muitos estudantes. O casal recebe várias mensagens de pessoas que acertaram questões do ENEM graças aos vídeos. Há, ainda, histórias de quem resolveu seguir na carreira científica por influência dos conteúdos.

O Manual do Mundo virou uma produtora de conteúdo e também o principal trabalho do casal. A empresa conta hoje com editores, roteiristas, cinegrafistas, fotógrafos e até físicos.

Com a pandemia, o uso do YouTube para estudo cresceu exponencialmente. À reportagem, a empresa informou que percebeu uma ligeira alta no uso da plataforma por brasileiros que buscam por notícias, entretenimento e aprendizado.

“A média de visualizações diárias de vídeos com ‘ensino em casa’ no título aumentou mais de 120% globalmente desde março de 2020, em comparação ao resto do ano”, diz Clarissa Orberg, Gerente de Parcerias Estratégicas para Conteúdos Infantis e Educacionais no YouTube Brasil.

EduTubers: assim são conhecidos os professores que se dedicam a dar aulas através do YouTube, e especialidades não faltam. É possível aprender de tudo através da plataforma: inglês, matemática, história, química e até áreas como edição de vídeo, música, marketing digital e stop motion.

De olho nisso, o YouTube lançou em 2013 o YouTube Edu, em parceria com a Fundação Lemann. O canal exclusivo de educação reúne conteúdos guiados pela Base Nacional Curricular que são destinados a alunos do Ensino Fundamental e Médio, incluindo aqueles que estudam para o ENEM.

De acordo com Orberg, “ao longo dos anos, mais de 450 canais passaram por um rigoroso processo de avaliação e foram aprovados para fazer parte do projeto”. A empresa também criou o hub Aprender, que reúne publicações de diversas áreas do conhecimento, tudo gratuito.

YouTube Edu / Tecnoblog

Professora há 26 anos, Angela Pereira, 45, se dedica a ensinar matemática no YouTube e, ao mesmo tempo, leciona em uma escola pública em São Paulo. Criado em setembro de 2015, o canal, intitulado de Professora Angela Matemática, está prestes a completar 900 mil inscritos, considerado um dos maiores canais de matemática do país.

Ao Tecnoblog, Angela conta que sempre quis ser professora, desde pequena. Antes de entrar para o site, passou a lecionar para novos alunos que vieram de escolas diferentes. Como cada criança possui seu ritmo de aprendizado, ela começou a dar aulas de reforço para a nova turma. Em paralelo, também indicava videoaulas de outros professores do YouTube, que hoje são seus amigos.

No primeiro mês de reforço, as aulas extras deram certo, mas a coisa desandou quando alguns alunos esqueciam ou perdiam os cadernos de estudo. “Meu marido olhava eu andando com aquele monte de caderno para cima e para baixo e certo dia disse: ‘monta um canal e filma suas aulas’. Eu gostei da ideia e resolvi criar um canal que servisse como um reforço para os meus alunos”.

Professora Angela Matemática / Arquivo pessoal

Depois disso, o Professora Angela Matemática cresceu, assim como a responsabilidade. “Foi você que mostrou pra mim que a matemática não é tão difícil assim”, escreveu um aluno em um dos seus vídeos.

Há dois anos, Angela recebeu um e-mail de uma mulher do interior de Santa Catarina que tinha o sonho de ser engenheira, mas a família não aprovava sua decisão, alegando que engenharia não é uma profissão para mulher. No e-mail ela conta que, certo dia, encontrou o canal de matemática e ficou surpresa com os vídeos. “Nossa, professora mulher de matemática [no YouTube]”, disse, e, a partir daí, começou a estudar.

“Ela sentiu inspiração para manter esse sonho e fez o vestibular para estudar engenharia mecânica na Universidade Federal de Santa Catarina — e passou. Depois, essa aluna mandou um e-mail agradecendo que eu fui a fonte de inspiração dela, não só por ter ajudado com as videoaulas, mas por eu ser mulher e mostrar para ela que é possível”, conta Angela. “Eu fiquei muito emocionada e mexeu muito comigo”.

Estúdio onde grava as aulas de matemática / Arquivo pessoal

Em relação aos desafios de lidar com dois públicos diferentes, Angela explica que na sala de aula ela precisa despertar o interesse do aluno que, muitas vezes, não está tão disposto. Já no YouTube são os telespectadores que procuram por Angela; eles pedem e sugerem conteúdos e a professora produz.

O designer gráfico Héber Simeoni, 33, está no YouTube há 11 anos. Ele se dedica a ensinar edição de áudio, vídeo, efeitos visuais, montagens no Photoshop, entre outros. Tudo começou quando ele não estava muito feliz em um emprego e conseguiu migrar para uma instituição de ensino em São Paulo.

Na nova empresa, onde trabalha com aulas EAD, Simeoni aproveitava o tempo livre para criar tutoriais de After Effects, Premiere, Photoshop, além de Cinema 4D e Zbrush, e depois postava todo esse conteúdo em seu canal — hoje com 235 mil inscritos.

Héber Simeoni

Na plataforma, Simeoni é conhecido por ensinar de forma lúdica e com uma linguagem simples, estratégias usadas para ajudar todo o tipo de público que chega aos seus conteúdos. “Eu adoro o que eu faço, para mim, é uma diversão, eu só tento levar isso para o aluno”, conta ele ao Tecnoblog. “Acho que conhecimento muda as nossas vidas, mas o modo como esse conhecimento é transmitido consegue marcar as pessoas de verdade”.

Desde 2014, o EduTuber de audiovisual enxerga o seu canal como uma empresa. Além de todas as tarefas de preparação dos vídeos, ele sempre separa um tempo do dia para tirar dúvidas dos alunos, curtir e responder outros comentários.

Essa proximidade com quem assiste é recorrente entre os EduTubers e ela vai além da plataforma de vídeo. Carol Gonzalez, 29, é dona da Maria Marcolina Filmes que, além de produtora de stop motion, também virou “escola” com vídeos no YouTube e em plataforma própria.

Para atrair esse público tão segmentado, Gonzalez usa regularmente o Instagram e o Telegram, que servem como canais para compartilhar conhecimento. “Uma animação que eu ensinei a fazer no YouTube, a pessoa vai ver o resultado lá no Instagram e eu acho legal essa interação entre as redes”, conta.

Aula de stop motion com Carol Gonzalez

No Telegram, especificamente, ela geralmente costuma compartilhar insights em áudio, PDFs, vídeos sobre stop motion e outros materiais de estudo. “No Instagram e no Facebook você está sempre a mercê do algoritmo, diferentemente do Telegram que, se a pessoa se cadastrou na sua lista, ela vai receber 100% do que você enviar”, afirma.

No YouTube há cerca de um ano, Carol resolveu apostar na plataforma enquanto fazia mestrado de stop motion em Barcelona, Espanha. Com pouco mais de 1.500 inscritos, o canal tem como objetivo não só ensinar animações, mas também foca em ajudar a captar clientes através das animações e a entender termos complexos da área.

Apesar do amplo alcance e de números consideráveis, trabalhar com o YouTube tem lá seus desafios e limitações. Os EduTubers ouvidos pela reportagem relatam que só o YouTube não paga as contas, portanto, a plataforma de vídeos serve como um complemento de renda.

“O YouTube é só para ter algum dinheiro extra quando as coisas apertam ou para juntar [dinheiro] para comprar algum equipamento que eu precise”, conta Simeoni.

Angela não deixou os corredores da escola. Entretanto, durante a pandemia, ela vem trabalhando de casa para não deixar seus alunos sem aula. Ao mesmo tempo, cria conteúdo para o canal. Quanto à renda através do YouTube, ela lembra que seu canal é como se fosse uma “biblioteca”, o que acaba influenciando na monetização.

“É uma biblioteca em que as pessoas precisam de um assunto e aí elas vão lá procurar; não é a mesma coisa de um canal de entretenimento que, vamos supor, o telespectador gosta daquela pessoa e aí todo o vídeo que ele publica, a pessoa vai lá assistir”, explica Angela.

Clarissa Orberg afirma que o YouTube “procura continuamente expandir os recursos disponíveis e oferecer suporte para que os criadores possam compartilhar conteúdo educacional relevante e que os usuários encontrem o que estão procurando para aprender de maneira rápida e eficiente”.

Assim como a educação, o acesso a todos esses conteúdos disponibilizados gratuitamente ainda é restrito. Muitos deles não chegam a todos os jovens brasileiros, o que acaba desencadeando outro debate sobre a democratização do ensino.

Mizter_X94 / YouTube / Pixabay / como fazer capa para youtube

Alexsandra Oliveira, Dra. em Educação e Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense (UFF), apoia a forma como o YouTube auxilia na educação, mas também faz observações importantes. “Acredito que a plataforma seja um recurso didático pedagógico importante, principalmente neste momento de isolamento social, ensino remoto, ensino emergencial e também quando falamos em EAD”.

“Mas não podemos deixar de falar da exclusão social, dos alunos que não possuem acesso à internet. Vivemos em um país marcado pela exclusão social. O que faremos com os alunos das redes públicas que não possuem acesso às tecnologias? Vamos excluí-los do direito de aprender?”, questiona.

Sala de aula

Ao menos 4,8 milhões de crianças e adolescentes não têm acesso à internet no Brasil; são brasileiros com idade entre 9 e 17 anos, revela a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2019, apurada entre outubro de 2019 e março de 2020. A situação é ainda pior em áreas rurais, nas regiões Norte e Nordeste, e em domicílios das classes D e E.

Muitos EduTubers também defendem uma mudança no sistema de ensino tradicional. Nos vídeos, eles costumam usar uma linguagem mais simples, bem-humorada e, com a tecnologia, eles conseguem explicar de forma mais didática.

Alexsandra defende essa “modernização”, mas ressalta que isso deve acontecer de maneira mais ampla, considerando, ainda, transformações em áreas administrativas, pedagógicas e financeira.

Enquanto essa mudança não acontece, especialistas em educação acreditam que os professores podem aproveitar esse vasto material no YouTube em sala de aula. “[Eles podem usar], como metodologia de ensino, didática, com a mediação do professor no processo. Porém, temos ainda outro desafio a vencer, incluir a todos em uma sala de aula”, conclui Alexsandra.

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