A tecnologia ganhou um papel fundamental durante a pandemia de COVID-19. Além de conectar pessoas em chamadas de vídeo, esquemas de home office se tornaram realidade na vida de muitos brasileiros devido às medidas de isolamento social para combater o novo coronavírus. Mas a sua aplicação nesse contexto não se encerra aqui.
Em diversos países, a tecnologia também é empregada para auxiliar no combate à pandemia. O uso de aplicativos é um exemplo. Se não pela capacidade de reunir informações para conscientizar a população sobre a doença, como o Coronavírus – SUS, outros prometem ainda ir além.
A solução vem sendo adotada em quase todos os cantos do mundo. Diversos governos, em parceria com empresas privadas ou não, buscam desenvolver o seu próprio aplicativo com o mesmo objetivo: monitorar a pandemia. Mas como eles funcionam?
Há diversos tipos de aplicativos para rastrear o novo coronavírus, como, por exemplo, aqueles que são utilizados para monitorar o contato entre as pessoas. Em outras palavras, essas ferramentas verificam se o usuário se aproximou de alguém que testou positivo para a doença, e emitem uma notificação de exposição logo em seguida.
O funcionamento dessas plataformas também varia, a começar pela tecnologia utilizada para o rastreamento. Em alguns países, como na Índia, Irã, Israel, opta-se pelo monitoramento via geolocalização dos usuários. Já na Austrália, Áustria, França e Itália, a verificação de aproximação é realizada via Bluetooth, solução liderada pelo app TraceTogether, de Singapura.
Isto não significa, porém, que os aplicativos utilizem apenas um método para coleta de informações. Em alguns casos, como na China, as autoridades lançam mão tanto da geolocalização quanto de técnicas de data mining, por exemplo, durante o rastreamento.
Todas essas decisões refletem diretamente na privacidade do usuário. Segundo a pesquisadora, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretora do MediaLab.UFRJ, Fernanda Bruno, ao Tecnoblog, “os aplicativos que utilizam tecnologia de geolocalização e protocolos centralizados no tratamento dos dados são mais invasivos”.
Outros fatores, como a abordagem utilizada por essas ferramentas, também devem ser levadas em consideração. “Os que utilizam protocolos descentralizados com um registro mínimo de informações pessoais e dados anonimizados, seriam mais respeitosos à privacidade, pois a princípio não permitem que nenhuma instância central – seja estatal ou privada – identifique os usuários ou quem teve contato com quem”, explica.
A professora cita como exemplo a tecnologia desenvolvida pela Apple e Google, apresentada como uma “ferramenta amigável à privacidade”. Além de monitorar o contato via Bluetooth, o recurso utiliza uma abordagem descentralizada. O uso da aplicação também é opcional, conforme explicado anteriormente no Tecnoblog.
Além da ferramenta do Google e da Apple, há países que optam pelo DP-3T, sigla para “Decentralized Privacy-Preserving Proximity Tracing”. Também baseado em Bluetooth, o protocolo possui uma abordagem descentralizada, e foca na privacidade dos usuários – como o próprio nome diz.
Outros fatores que impactam diretamente os direitos dos usuários, segundo a professora, é o uso obrigatório dessas ferramentas e a questão do consentimento do uso de informações. A Electronic Frontier Foundation (EFF) ainda destaca que essas aplicações devem ser transparentes e ter um “prazo de validade”, como já ocorre com a tecnologia da Apple e do Google, que permite desativar o recurso regionalmente após a pandemia.
Mas há alguns percalços nessa história toda. Para que esses recursos funcionem, é preciso que boa parte da população instale esses aplicativos no celular, condição que pode ser facilmente impactada por fatores socioeconômicos. Outra barreira é a falta de testagem em massa, um pré-requisito para o funcionamento esperado desses aplicativos. A prática, porém, não acontece em muitos países, incluindo o Brasil.
Diferentemente de outros países da Europa e demais continentes, o Governo Federal não anunciou o desenvolvimento de um aplicativo específico para monitorar a COVID-19 no Brasil. Ainda assim, em outras esferas governamentais, houve menções que se aproximaram da ideia.
Em março, o Governo do Estado do Rio de Janeiro chegou a anunciar o desenvolvimento de um aplicativo para fornecer um “certificado de alta” e coletar informações sobre a pandemia. Procurada pelo Tecnoblog para buscar mais informações sobre o app, a Secretaria Estadual de Saúde fluminense não retornou o contato até a publicação desta reportagem.
Em algumas empresas, alternativas similares são adotadas para monitorar a doença no ambiente de trabalho. É o caso da Ambev, que anunciou o MPI (Mapeamento Preventivo de Interação) para uso interno, com base em experiências realizadas na Coreia do Sul e Singapura.
Já a Prefeitura do Rio de Janeiro não anunciou um app de rastreio. Mas levou o aplicativo oficial do Centro de Operações Rio (COR), o COR.Rio, à linha de frente para fornecer informações. Segundo o COR, “desde 30 de abril, uma mensagem informa que ‘há casos confirmados da COVID-19 perto da sua residência’. O aviso é enviado por mensagens de texto no aplicativo do COR (COR.RIO) e no celular, via Twitter e SMS. Mas, em caso de necessidade, enviamos avisos específicos georreferenciados, como o pedido de respeito ao isolamento social, em dias de sol, para a orla da cidade”.
O uso de dados é outra aposta encontrada por empresas e governos durante a pandemia. O Centro de Operações Rio (COR), por exemplo, utiliza sua estrutura para monitorar o distanciamento social no Rio de Janeiro. Segundo a assessoria do COR, além das câmeras espalhadas pela cidade, dados de operadoras são utilizados nas análises da instituição.
“O COR trabalha com diversas ferramentas de análise. Entre elas, a contagem automática de pessoas pelas imagens das 400 câmeras da prefeitura, com tecnologia da empresa Cyberlabs. Também são utilizados os dados da operadora TIM sobre circulação de pessoas; o painel de mobilidade – comparativo das condições trânsito e transporte durante a evolução da pandemia – e os chamados do Disk-Aglomeração, o serviço funciona com base em chamados feitos à Central 1746 (telefone, site ou aplicativo), além de sinais de celulares”, explicam.
O Google dispõe de informações da mesma estirpe. Desde abril de 2020, a companhia disponibiliza uma base de dados global e relatórios regionais, divididos por países, conhecidos como “Relatórios de mobilidade da comunidade”, a partir de informações anônimas coletadas em serviços da empresa, como o Google Maps.
Segundo o Google, “os Relatórios de mobilidade da comunidade têm como objetivo fornecer informações sobre o que mudou em função das políticas criadas para enfrentar a COVID-19. Eles mostram gráficos com tendências de deslocamento ao longo do tempo por região e em diferentes categorias de locais, como varejo e lazer, mercados e farmácias, parques, estações de transporte público, locais de trabalho e áreas residenciais”.
Há bastante informação nas mãos de empresas e governos. Mas será que a integridade desses dados, os direitos e a privacidade dos cidadãos estão sendo respeitados? Ou será que eles estão seguros? Em muitas das vezes, não.
Alguns casos já são conhecidos: em maio, o Catar tornou-se centro das atenções não somente pela falha no aplicativo Ehteraz, que expôs dados de um milhão de pessoas, mas também pelo uso obrigatório do app. Ainda no mesmo mês, a Índia foi questionada por impôr a instalação do Aarogya Setu. Ambas as ferramentas coletam a localização dos usuários.
A vigilância é outra preocupação causada por esses aplicativos. “Sim, há o risco de que o uso desses aplicativos venha a expandir o poder de vigilância de governos e empresas porque há potencialmente o risco de que se venha a ter acesso a dados extremamente sensíveis que podem ter efeitos drásticos sobre a vida das pessoas”, diz a professora Fernanda Bruno.
Mas não somente com aplicativos é feita a vigilância. Países, como o Peru, passaram a coletar informações sensíveis, como o histórico de localização de cidadãos, a partir de empresas de telefonia. Os decretos emergenciais, porém, foram questionados pela ONG Hiperderecho.
“A ONG peruana de direitos digitais lança dúvidas sobre a base legal de tais medidas de vigilância. Também levantou preocupações sobre possíveis armadilhas que a restrição do direito à privacidade em um estado de emergência pode causar no Peru”, explica a Electronic Frontier Foundation (EFF).
Além disso, “os aplicativos de rastreamento de contato estão sujeitos, por exemplo, a erros, produzindo o que tecnicamente seriam falsos positivos (usuários erroneamente detectados como suspeitos de estar infectados) e falsos negativos (deixar de detectar e alertar usuários que tiveram contato com pessoas infectadas)”, explica a professora.
“Os efeitos desses erros podem ser mais ou menos graves a depender da situação social, clínica e psicológica de cada um”, completa.
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