Twitter e Donald Trump estão em guerra. O presidente americano é alvo constante do “filtro” do passarinho azul, que passou a rotular publicações duvidosas de Trump como “mídia manipulada”, “glorificação da violência” e, em algumas situações, chegou até a remover tweets da plataforma.
Não há dúvidas de que a gestão Trump será marcada pelas declarações no Twitter. Desde que assumiu o poder, em 2016, o líder dos Estados Unidos usa a rede social para se comunicar com apoiadores, atacar adversários e até anunciar medidas que afetam outros países, como fez ao declarar que iria retomar as taxas sobre o alumínio e o aço do Brasil e da Argentina, em dezembro do ano passado.
Ainda que utilize o Twitter assiduamente, Trump demonstra não ter mais apreço por esse meio de comunicação. Não é de hoje que o Twitter interfere e exibe selos em publicações do americano. Entretanto, nos últimos meses, os rótulos têm surgido constantemente na conta de Donald Trump e sempre em assuntos que estão em pauta na sociedade.
O embate se intensificou em maio de 2020, quando o republicano criticou as eleições por cédulas via correio. “Caixas de correio serão roubadas, as cédulas serão falsificadas e até impressas ilegalmente”, escreveu Trump.
Logo em seguida, a rede social adicionou — pela primeira vez — um selo ao tweet com a mensagem: “Conheça os fatos sobre as cédulas por correio” e um hiperlink que direciona para uma página com conteúdos de veículos de imprensa, que desmentem a afirmação dele.
Em resposta, Trump assinou uma ordem executiva (algo semelhante a um decreto no Brasil), que altera a Seção 230 da Lei de Decência das Comunicações, limitando proteções a gigantes da tecnologia, como Google, Facebook e, claro, o Twitter. A Seção 230 dá respaldo para essas empresas, deixando elas imunes de responsabilidade legal pelas publicações de seus usuários.
Trump, porém, não é o único a receber o selo por propagar informações inverídicas. O presidente brasileiro Jair Bolsonaro chegou a ter duas publicações excluídas do Twitter por violar as regras da plataforma. O presidente venezuelano Nicolás Maduro também foi alertado pela rede social, assim como o aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã.
As advertências do Twitter, sobretudo nos tweets de Donald Trump, desencadearam uma discussão complexa: o Twitter pode intervir nas postagens de seus usuários em qualquer situação? A empresa pode abrir caminho para a censura em mídias sociais?
Especialistas ouvidos pelo Tecnoblog avaliam que as mídias sociais podem abusar e ferir a liberdade de expressão em alguns momentos. Para evitar isso, é imprescindível ter regras claras, para que os usuários possam ter ciência do que poderá ser banido. Ainda assim, há opiniões distintas sobre o tema.
“A mesma tecnologia que permite o máximo exercício da liberdade de expressão, também pode ser utilizada para manipular e para censurar”, alerta Patricia Peck, advogada especializada em direito digital, que defende a neutralidade das redes.
Ela afirma que estamos em um momento desafiador e que há abusos em todos os lados. Para Peck, é preciso um equilíbrio saudável neste momento.
“Se não houver regras mais claras, para tratar especificamente este novo contexto, corremos o risco de que haja o predomínio do mais forte, daquele que detém o poder da informação e isso está com as plataformas digitais. Precisa haver critérios para permitir ao próprio cidadão exercer sua livre escolha, sua livre opinião, e acima de tudo, assumir a responsabilidade sobre seus atos”, declara.
Já Cláudia Silva, que é pesquisadora no ITI-LARSyS e professora universitária de Mídias Digitais em Lisboa (Portugal), enxerga a posição do Twitter como “positiva e exemplar”, especialmente pelo período atual: eleições 2020 e a pandemia de coronavírus.
Para Silva, é preciso ampliar o debate e considerar que estamos falando de empresas de tecnologia (Facebook, Instagram, YouTube, WhatsApp, Google).
“São empresas tecnológicas. O problema reside nesta designação. Não são empresas editoriais nem produtoras de conteúdos. Isto quer dizer que legalmente estas empresas de tecnologia não são responsáveis pelos conteúdos que os seus utilizadores produzem e publicam nas suas plataformas”.
Sobre ferir a liberdade de expressão, ela acredita que depende de dois fatores: o contexto e como a publicação foi feita. “[No caso de Trump na polêmica do voto por correio], o que o Twitter fez foi assinalar/rotular/etiquetar a informação que o presidente dos EUA publicou”.
“Lembremos que não é a primeira vez que Trump e o Twitter estão envolvidos num debate sobre censura. Em Julho de 2019, um juiz federal proibiu Trump de bloquear seguidores no Twitter por considerar inconstitucional um chefe de Estado barrar os seus críticos em fóruns online, impedindo-os de interagirem consigo. A atitude de Trump foi considerada uma censura pelo juiz”, recorda Silva.
Isso ainda nos faz lembrar que, diferentemente de outros países, a liberdade de expressão nos Estados Unidos é mais “ampla”, blindando até mesmo mensagens ofensivas de punições do governo. Está na Primeira Emenda da Constituição: o Estado não pode limitar a liberdade de expressão.
“No sistema norte-americano a liberdade de expressão normalmente não se aplica ao setor privado”, lembra Christian Perrone, pesquisador sênior da área de Direito e Tecnologia do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS). “O governo não pode restringir a liberdade de expressão e deve zelar por ela, mas o setor privado pode se beneficiar dessa liberdade, mas em tese pode restringir alguns discursos”.
“Por exemplo, uma escola não precisa permitir que entrem videogames violentos nas salas de aula. Videogames violentos são legais, e protegidos por liberdade de expressão, mas a escola pode restringir a sua circulação sem violar a liberdade de expressão. Já o Estado impedir, aí precisa de uma justificativa legítima”, explica Perrone.
Em entrevista ao Tecnoblog, Fernando Gallo, gerente de políticas públicas do Twitter Brasil, esclarece que a rede social “não remove ou adiciona avisos a tweets com base em sua veracidade, uma vez que a empresa não infere nem classifica o que é verdadeiro ou falso”.
As publicações são removidas a partir de diferentes regras, como conteúdo abusivo, conduta de ódio, ameaças violentas ou informações que possam levar as pessoas a sofrer danos, ou prejuízos no mundo real (offline), explica.
Com relação aos rótulos, Fernando salienta que o objetivo do Twitter é dar contexto em publicações com “mídia sintética ou manipulada” ou quando apresentam informações duvidosas. “Nossa intenção é ampliar o acesso das pessoas a informações sobre os temas em questão nos tweets”.
E completa: “Queremos, com isso, tornar mais fácil o acesso a fatos e contribuir para a tomada de decisões informada a respeito do que é visto na plataforma. Ao introduzir contexto, damos às pessoas a oportunidade de acessar diferentes fontes de informação para que elas façam sua própria interpretação e julgamento”.
Interesse público
O Twitter adiciona uma advertência em conteúdos que infringem as regras da rede social, porém não há a remoção do tweet porque plataforma entende como ser de “interesse público”. Esse tipo de alerta, no entanto, só aparece em perfis de:
Além disso, o Twitter considera que a conta deve ter mais de 100 mil seguidores e deve ter o selo de verificado.
Exemplo: pode aparecer em perfis de presidentes, ministros de Estado, deputados, senadores, governadores, prefeitos.
Mídia sintética ou manipulada
O selo “mídia manipulada”, ou com outro alerta semelhante, pode ser introduzido em qualquer conta no Twitter. Trata-se de uma medida recente, que entrou em vigor no dia 5 de março de 2020 e poderá aparecer em conteúdos manipulados, seja vídeo, áudio ou imagens.
A partir disso, a rede social pode dar contexto ao que foi compartilhado, fornecendo um hiperlink para o Moment, onde será possível ter esclarecimentos sobre o tema abordado.
Exemplo: Donald Trump já compartilhou um vídeo manipulado no Twitter; a rede social exibiu o aviso.
O Facebook, que também é controlador do Instagram e do WhatsApp, se mostra mais retraído no meio desse debate. Ainda que ambas as redes tenham políticas parecidas para conteúdos que exaltam a violência (Facebook | Twitter), a empresa de Mark Zuckerberg tem posição contrária a interferência e exibição de rótulos.
Após a polêmica das eleições por correio no Twitter, Zuckerberg concedeu uma entrevista para o canal Fox News, onde disse que plataformas digitais não devem atuar como “árbitro da verdade”.
“Ao contrário do Twitter, não temos uma política de colocar um aviso nas publicações porque acreditamos que se uma publicação incitar à violência, deve ser removida independentemente”, escreveu Zuckerberg em sua conta oficial. O CEO do Facebook ainda ressalta que sua empresa está “comprometida com a liberdade de expressão”.
No texto, ele ainda se refere a uma publicação polêmica de Donald Trump no auge das manifestações contra a morte de George Floyd. “Quando o saque começar, o tiroteio começará”, escreveu o presidente nas duas redes sociais, ameaçando os manifestantes.
O Twitter resolveu “esconder” a publicação de Trump por considerar que enaltece a violência; a empresa não removeu o post por julgar ser de “interesse público”. O Facebook, por sua vez, não interveio.
“Continuaremos a apontar informações incorretas. Nossa intenção é conectar os pontos de declarações conflitantes e mostrar as informações em disputa para que as pessoas possam julgar por si mesmas”, declarou Jack Dorsey, CEO da Twitter.
O Tecnoblog apurou que a posição do Facebook no Brasil está alinhada ao que defende Mark Zuckerberg, ou seja, a empresa de tecnologia não é o árbitro da verdade e, por ora, a companhia não pensa em interferir em conteúdos dos usuários com selos.
Sobre as fake news, atualmente o Facebook não exclui notícias falsas que circulam em sua plataforma. No entanto, ela limita o alcance dessas publicações. A política fraca do Facebook já fez a empresa perder 100 anunciantes nos Estados Unidos.
Para Arthur Igreja, professor da FGV e especialista em Inovação e Tecnologia, o Twitter está se posicionando em uma direção mais firme, enquanto o Facebook se mostra isento como uma forma de estratégia. “Zuckerberg reforça que não tem responsabilidade pelos conteúdos postados ou eventuais danos à democracia. É uma estratégia para ser o maior possível e para ninguém bater de frente”, crítica.
Os rótulos do Twitter mostram o quanto a plataforma deseja estar preparada para as eleições 2020, analisa o advogado Sandro Caldeira. “O grande foco [do Twitter] são as eleições americanas, marcadas para novembro, na tentativa de evitar que tais publicações possam gerar uma manipulação em massa dos eleitores. Aqui no Brasil também”.
Entretanto, o rótulo sozinho não é suficiente para combater os difusores de fake news. “Talvez uma boa forma de lidar com a questão é desincentivar a ‘indústria da desinformação’, as estruturas por de trás que organizam e financiam as campanhas de desinformação”, analisa Christian Perrone.
“Nesse sentido, para as eleições, seria bom contar além da ação das plataformas, também como algo muito pontual e específico que ficasse na regulação e controle do financiamento e organização de campanhas estruturadas com o intuito de gerar desinformação”, diz.
Perrone pondera que a manipulação da informação pode trazer sérios danos para o sistema democrático. Ele lembra, por exemplo, o escândalo da Cambridge Analítica.
“O caso da Cambridge Analítica mostrou como o uso coordenado e estruturado de manipulação de informação e de desinformação em si mesmo pode causar muitos danos, um dos mais importantes é o desincentivo de participar das eleições — chamado de supressão de votos”.
Facebook e Twitter adotam políticas semelhantes no combate à desinformação. Ambas trabalham para fomentar a educação midiática, e contam com parceria com agências de checagem de fatos.
Notícias falsas sobre a pandemia de coronavírus não param de circular nas redes sociais e os números mostram claramente isso. Pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), analisaram as fake news que mais circularam em mídias sociais nos meses de março, abril e maio, reportadas no aplicativo Eu Fiscalizo.
O estudo foi divido em duas fases e revela um aumento expressivo de informações distorcidas durante a pandemia. Na primeira etapa, entre 17 de março e 10 abril, os pesquisadores analisaram que, entre as publicações recebidas através do app, 4,3% dos conteúdos apontavam que o novo coronavírus faz parte de uma estratégia política.
Depois, esse número subiu surpreendentemente para 24,6% na segunda fase, entre 11 de abril e 13 de maio.
Temas como métodos caseiros para evitar a contaminação, procedimentos para se curar da doença (COVID-19), informações inverídicas sobre o distanciamento social e até “notícias” que associam a pandemia a golpes bancários também foram apresentados no estudo.
Outro levantamento feito pelo Aos Fatos entre 20 de fevereiro e 8 de abril revelou que o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS) foi o parlamentar que mais compartilhou notícias falsas sobre a pandemia no Twitter. Atrás dele, estão outros nomes ligados à extrema-direita: Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), Bia Kicks (PSL-DF) e Marco Feliciano (Republicanos-RJ).
Vale lembrar que o Twitter já colocou um alerta em uma postagem de Osmar Terra. No conteúdo, o deputado põe em dúvida a eficácia do isolamento social: “Insisto que a quarentena aumenta os casos do coronavírus”, declarou. Logo em seguida, o Twitter adicionou um aviso na publicação e manteve ela no ar por classificar como de interesse público.
Como mostra o Aos Fatos, parlamentares de oposição também disseminaram informações inverídicas no Twitter. São eles: Margarida Salomão (PT-MG), Paulo Pimenta (PT-RS) e Bohn Gass (PT-RS). A lista completa está disponível para visualização de todos (Google Planilhas).
O combate à desinformação se tornou um gargalo no mundo contemporâneo. Há muito tempo que pesquisadores de mídia alertam que empresas de tecnologia (redes sociais) precisam ter um papel mais ativo para reprimir os criadores de notícias falsas, diz Cláudia Silva.
“Temos de continuar observando de forma crítica como estas empresas de tecnologia conduzem estas medidas de verificação da informação. É importante salientar que estas empresas não são propriamente inocentes. Pelo contrário, elas têm colonizado o espaço informacional global”, finaliza Silva.
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