Um projeto de lei na Câmara dos Deputados quer estabelecer uma missão (quase) impossível para o Brasil: acabar com o dinheiro em espécie e migrar o país para pagamentos por meio digital — incluindo cartões de crédito, débito e aproximação — em até cinco anos. Nesse prazo, seriam extintas todas as cédulas do real. Como seria a vida nessa utopia?
O deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), autor do PL 4068/2020, dá uma ideia em sua justificação. A corrupção, lavagem de dinheiro e o tráfico de drogas “ficarão quase impossíveis”; crimes como assaltos a bancos e arrombamentos de caixas eletrônicos seriam eliminados; e a sonegação de impostos “iria ser drasticamente reduzida”, porque toda transação financeira poderia ser rastreada.
De acordo com o projeto de lei, a produção, circulação e uso de dinheiro em espécie seria proibida em duas fases: cédulas de R$ 50 ou mais seriam extintas em até um ano; enquanto isso, cédulas abaixo desse valor sairiam de circulação em até 5 anos. O papel-moeda seria permitido apenas “para fins de registro histórico”.
A Casa da Moeda continuaria existindo, mas com a finalidade de criar “mecanismos tecnológicos para a transação financeira e de sistemas digitais”. Ela também ficaria encarregada de imprimir selos postais e títulos da dívida pública federal.
“É muito mais simples do que parece”, afirma o deputado. Ele menciona estatísticas da Abecs (Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços): os pagamentos digitais — como transações remotas no e-commerce e em aplicativos — representaram 43% do consumo das famílias brasileiras em 2019.
Além disso, segundo o World Payments Report, o Brasil é o quarto maior mercado a realizar transações sem dinheiro em espécie: ficamos atrás dos EUA, da Europa continental e da China. As estatísticas mais recentes aqui são de 2017, quando realizamos US$ 31 bilhões em pagamentos no cartão de crédito, débito, cheque ou transferência.
No entanto, o uso do dinheiro vivo no Brasil ainda é bastante alto. Um estudo de 2018 realizado pelo Banco Central revelou que:
Pior: a pandemia da COVID-19 fez com que os brasileiros usassem mais dinheiro em espécie. Um estudo publicado na SSRN (Social Science Research Network) concluiu que, em relação ao PIB (Produto Interno Bruto), o valor das cédulas em circulação subiu de 8% para 24% entre fevereiro e abril de 2020. O mesmo ocorreu nos EUA, Europa e outras regiões, à medida que pessoas e empresas reduziram gastos e aumentaram suas reservas.
De acordo com o Banco Central, existem 8,4 bilhões de cédulas em circulação no Brasil, no valor de R$ 342 bilhões. Isso sem contar os 27,5 bilhões de moedas, equivalentes a R$ 7,2 bilhões. Será que a gente realmente conseguiria deixar de usar esses meios de pagamento dentro de cinco anos?
O autor do PL menciona o Cadastro Único de programas sociais como um modelo de sucesso para as transações sem dinheiro em espécie, porque o benefício é recebido em cartões magnéticos. No entanto, ele não comenta as filas em diversas agências da Caixa para sacar o auxílio emergencial; o valor nem sempre pode ser usado devido a problemas técnicos no Caixa Tem.
Há ainda a questão da conectividade: é necessário ter acesso à internet, ou a alguma rede, para autorizar pagamentos sem dinheiro vivo. Isso pode ser uma dor de cabeça em diversos municípios afastados de grandes centros.
O projeto prevê que o governo federal, através da Casa da Moeda, deverá adotar as medidas necessárias para garantir acesso de toda a população aos meios de transações digitais — porém essa é uma tarefa mais difícil do que o deputado faz parecer.
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