Uma região desolada pela guerra. Tanques, tiros e bombardeios por todos os lados. Lojas e hospitais destruídos, água e alimentos escassos, edifícios ainda em pé por um fio. Você está no meio deste caos e precisa tentar salvar a si e quantos puder. Só que tem um porém: não é um soldado fortemente armado o super herói dessa história. Você é apenas uma pessoa comum; alguém que precisará fazer escolhas difíceis se quiser continuar vivo.
Este é somente um resumo de This War of Mine, um game no qual o jogador controla o destino de um grupo de civis tentando sobreviver numa cidade sitiada, quase sem nenhum recurso básico, e com franco-atiradores e coletores hostis sempre à espreita. O que, ou quem, você estaria disposto a sacrificar para continuar vivo ou para salvar alguém que ama? Como lidaria com as consequências dessas escolhas?
A narrativa nos games, quando bem construída e fundamentada, instiga emoções boas e ruins, além de reflexões sociais e, por que não, debates bem vindos sobre a aplicabilidade da psicologia na indústria dos jogos. Primeiramente, é bom entender que a narrativa não se restringe apenas à escrita e ao diálogo. Há títulos com histórias incríveis, como em Ori and the Will of the Wisps, sem que quase ninguém diga uma palavra.
A estudante de psicologia e comunicadora digital, Lisa Guerra, conta em entrevista ao Tecnoblog que “os jogos sempre tiveram o costume de mexer com o emocional das pessoas, seja pelos personagens ou pelas narrativas impactantes”.
“Vemos diversos games que nos fazem imergir tanto por fatores gráficos, composição de cores, trilha sonora e ambientação, como também dilemas morais, de forma que entramos na pele dos personagens e nos questionamos o que faríamos, ou sobre o que o jogo nos induziu a fazer”, comenta Lisa que tem um canal no YouTube onde fala sobre psicologia em séries, filmes e games.
Guerra cita, ainda, exemplos de títulos que promovem essa imersão moral, nos moldes de This War of Mine, como: The Last of Us, Life is Strange e Detroit: Become Human – por exemplo. “Todos trazem consigo essa carga emocional forte, como se fossem um exercício do qual precisamos olhar para dentro de nós mesmos ou para a sociedade ao redor e nos questionar o que estamos fazendo quanto sujeitos coletivos”, explica.
Mas será que é possível deduzir o quanto um game pode ser impactante para um jogador?
[Atenção] Para nos aprofundarmos melhor no tema, é possível que alguns spoilers sejam mencionados a partir deste ponto.
Esta afirmação é de Lucas Aguiar Goulart, mestre e doutor em psicologia social e institucional pela UFRGS. Sobre a questão de um game induzir um jogador a “sentir” a história, o psicólogo acredita que “embora as emoções sejam sim importantes dentro da relação imersiva de identificação, estudos já mostram que a relação sentimento-identificação-imersão não é tão linear quanto se pensava”, comenta.
“Mesmo que exista um campo emocional restrito [feito para ‘conduzir’ o jogador pela história], é impossível delimitar exatamente qual seria a emoção criada ali – visto que nossas emoções são compostas dentro de redes de significação, com memórias de nossas próprias vivências subjetivas”, pontua Goulart que também é pesquisador sobre game design afetivo.
O que o psicólogo quis dizer é que a indústria de jogos costuma agir de duas maneiras, quando procura instigar reações emotivas. Segundo ele, a primeira é já pressupondo que o jogador compreende a complexidade da narrativa criada e irá compor sentidos próprios daquela vivência. A outra é uma proposta extremada, e muitas vezes simplista, que insere o jogador em redes afetivas estereotipadas: “especialmente quando esta é membro de alguma população vulnerável (…), algo que tem sido chamado por muitas autoras de ‘pornografia de empatia'”, segundo Goulart.
Numa abordagem complementar ao uso de emoções na narrativa dos jogos, outro ponto que precisa ser mencionado é em como os estúdios, por vezes, constroem os perfis psicológicos de alguns personagens (geralmente os centrais) para tentar provocar as mais diversas reações no jogador, seja de aversão, carinho, pena ou angústia.
Talvez, numa tentativa de fugir dos clichês clássicos e estereotipados de “mocinho e vilão”, os desenvolvedores tenham apostado em mergulhar na mente de figuras principais da trama, seja trabalhando transtornos psicológicos ou criando gatilhos na história deste indivíduo para que seja um motivador de redenção, vingança, vitória ou derrota.
Por exemplo, jogos como Hellblade: Senua’s Sacrifice e The Last of Us – Part 2 trabalham claramente em suas protagonistas (Senua e Ellie, respectivamente) transtornos psicológicos. Neste caso, o estresse pós-traumático (a perda do grande amor e a perda da figura paterna).
O interessante de observar, especificamente nestes dois casos (até para delimitarmos um pouco este assunto que é bem vasto), é como os estúdios usam recursos extras para abordar esses temas. Senua e Ellie não precisam, explicitamente, falar que estão sofrendo. O jogador nota isso nas expressões corporais, em como elas reagem às outras pessoas e/ou o mundo à volta. Os próprios efeitos de ambientação (som, luzes e sombras) ajudam a nós, jogadores, a interpretar o que está acontecendo.
“Ellie [em The Last of Us – Part 2] passa por um momento muito difícil com a perda abrupta da sua figura paterna, o que desencadeou um Transtorno de Estresse Pós-traumático (padrão de comportamento que pode ser desencadeado após o sujeito vivenciar, de forma direta ou indireta, um evento traumático) do qual os escritores fizeram questão de espalhar diversos sintomas ao longo do game”, comenta Lisa Guerra.
A estudante continua: “observamos que eles se utilizam sim de diversos recursos digitais alterando tanto o aspecto físico e abatido da personagem e até recursos na edição, como cortes secos representando flashbacks indesejados do trauma na mente da Ellie.”
Lisa, no entanto, acredita que nem sempre isso seja intencional: “como, em diversas vezes, os games se espelham em nossa realidade, os fatores relacionados à psicologia acabam aparecendo indiretamente, pois é algo intrínseco em nós seres humanos.”
Lucas Goulart explica que embora seja interessante os estúdios trazerem estas narrativas para os games, raramente existe uma diferença muito significativa do ponto de vista da mecânica. “O modelo como estes jogos [Hellblade e TLoU2] atuam é muito mais próximo do modelo do cinema (não por coincidência, ambos são bastante lineares, que é o tipo de jogo que melhor dialoga com a experiência do cinema), e também porque, por serem mainstream, tem sempre que ter a violência e a luta como atividades mecânicas centrais.”
O psicólogo acrescenta, ainda, que títulos que costumam ser mais discutidos em relação a transtornos psicológicos são jogos indie, onde o menor escopo traz uma possibilidade maior de variação de estrutura, e o game pode realmente inserir jogadores em redes afetivas que indiquem as vivências de pessoas com traumas, visto que não têm de estar sempre ligadas às repetitivas mecânicas dos jogos AAA.
“Jogos como That Dragon, Cancer – por exemplo – que fala sobre a perda de um filho com câncer e utiliza seu gameplay para criar sensações de alívio, fracasso, tristeza, frustração e esforço, demonstram o quanto essas mecânicas são produtoras de emoção”, conta Goulart.
Abrimos este artigo falando um pouco da história abordada em This War of Mine, jogo independente de sobrevivência desenvolvido pelo 11 bit studios, com sede em Varsóvia, capital da Polônia.
This War of Mine é fortemente impulsionado por uma narrativa que coloca o jogador em situações difíceis o tempo todo, com escolhas morais que podem ter consequências em curto ou longo prazo. Tomasz Kisilewicz, Lead Artist durante a produção do game (hoje Game Director em outro projeto), conta ao Tecnoblog que o conceito partiu de Grzegorz Miechowski, que era CEO na época da produção do jogo e agora é COO do 11 bit studios.
“Quando esta ideia chegou, a equipe já estava fazendo o protótipo de um game de sobrevivência. Mas ainda não havia uma mensagem por trás que fosse forte o suficiente para ser considerada única e significativa”, diz Kisilewicz. “Grzegorz veio com esta ideia impactante após ler um livro que conta a história de um homem que sobreviveu a uma guerra na Iugoslávia.”
O artista comenta que a história foi tão impactante que ficou claro que poderia se tornar um tema significativo para um jogo. “Os games têm uma longa história de falar sobre guerra, mas apenas da perspectiva de soldados e cheia de ação. Rompemos a perspectiva do que os jogadores esperam de algo com esta temática”, explica Kisilewicz. “Como é dito num dos trailers do jogo: ‘na guerra, nem todos são soldados’. Descobrimos que aqueles que não são, também merecem ter sua história contada.”
Sobre os desafios de criar uma narrativa, que tem uma carga emocional tão pesada, a ponto de fazer o jogador questionar decisões reais que tomaria na vida, o 11 bit studios acredita que, para alcançar o resultado desejado, é necessário ter confiança total na mensagem que está tentando transmitir e, em seguida, encontrar as ferramentas certas para apoiá-la e torná-la o mais compreensível possível.
“Sabíamos que queríamos contar uma história de pessoas comuns enfrentando o drama da guerra. Com um objetivo claro em nossas mentes, poderíamos nos concentrar em construir mecânicas para colocar os jogadores nessas situações”, conta Kisilewicz. “Assim, eles podem ter empatia com os personagens e escrever suas histórias pessoais – com base em suas próprias decisões. Além disso, não julgamos essas decisões em nenhum nível e o remorso que os jogadores podem sentir, por algumas delas, provou ser uma parte poderosa da experiência.”
E tocando novamente no tema do uso de recursos psicológicos para a composição de perfis de personagens, This War of Mine buscou referências bem reais para estimular o jogador a imergir na narrativa. Realidade essa que fez parte, infelizmente, da vida de muitas pessoas na época da guerra abordada no game.
“Queríamos contar uma história daqueles que sofreram na guerra, mas a questão é: quem são essas pessoas? A resposta é: nós. Homens e mulheres comuns, como você e eu”, explica Kisilewicz. “Portanto, os personagens tinham que ser retratados dessa forma. A equipe usou fotos reais em preto e branco de colegas de trabalho, amigos e familiares para criar os personagens. Para modelos 3D, as pessoas foram digitalizadas em suas roupas normais do dia a dia, porque não queríamos que fosse encenado. Tinha que parecer real, cru e crível.”
O artista da 11 bit studios enfatizou que é sempre bom conhecer psicologia, pois isso ajuda a projetar situações que podem tirar os jogadores da sua zona de conforto. Ele conta, ainda, que os escritores da equipe leram muitos estudos científicos sobre os sintomas do Transtorno de Estresse Pós-traumático e as consequências psicológicas do trauma de guerra. Houve, também, muita pesquisa sobre como as pessoas sobreviviam a tempos de guerra ou cercos.
“Também tivemos um consultor chamado Emir Cerimovic, que escapou da Bósnia com sua família e testemunhou o inferno com seus próprios olhos”, relata Kisilewicz. “Por causa dessas pesquisas específicas [sobre a guerra da Bósnia], o desenvolvimento do jogo foi uma experiência assustadora para alguns membros da equipe. E alguns deles não queriam nem pensar sobre o próximo jogo, com tema de guerra, quando perguntamos o que fazer a seguir.”
E, finalmente, sobre a experiência de jogar This War of Mine, Kisilewicz diz: “o foco aqui é a experiência. O game permite que os jogadores escrevam suas próprias histórias narradas por suas decisões. Isso é inatingível em livros ou filmes, onde você é mais um espectador do que um diretor.”
Acredito que se os recursos psicológicos (incluindo a construção de estímulos sonoros e visuais) forem bem estruturados e desenvolvidos juntamente com a história do game e, claro, se o propósito do jogo for este, ou seja, instigar emoções no jogador, há sim um campo fértil a ser explorado.
Lisa Guerra, por exemplo, diz que vê a psicologia bastante presente nos mais diversos gêneros de jogos, desde aventura até terror e cita, como exemplo, Until Dawn, em que ao longo do game o jogador está em uma sessão de terapia, que vai ficando cada vez mais profunda e imersiva conforme a história avança.
“Acredito que ainda temos um longo caminho a percorrer quando falamos de psicologia e debate sobre saúde mental, mas sim, nos games é um movimento que vem ganhando força”, diz a estudante. “Diria que a psicologia não está apenas dentro de nós, muito menos limitada às definições de transtornos mentais, mas que ela também está naquilo que exteriorizamos para o mundo em formas de expressão [como nos jogos].”
Já Lucas Goulart acredita que o uso da psicologia em jogos é mais uma questão de mercado consumidor do que qualquer outra coisa. “Creio que esta presença provém da necessidade dos jogos de se mostrarem relevantes em discussões sociais, o que se deve à compreensão de que os jogadores que efetivamente compram games novos (…) costumam ser mais velhos – não existe uma discussão sobre ansiedade dentro de Fortnite ou ainda sobre depressão dentro de League of Legends, por exemplo.”
Para o psicólogo, esses assuntos aparecem como “temas adultos”, assim como a sexualidade, a paternidade, o limite e o impacto da violência. “Ao meu ver, é sim uma questão importante e uma prova de que existem possibilidades múltiplas e discussões éticas nas culturas de jogo digital, mas seria cínico da minha parte não reconhecer que esta é muito mais uma tendência de mercado”.
“Os jogos podem desencadear discussões, fazer perguntas ambíguas e ser instigantes enquanto tocam em questões difíceis”, acrescenta Tomasz Kisilewicz do 11 bit studios. “Mais importante – os games são capazes de fazer isso não apenas por meio da narração, mas também da mecânica de jogo central”, conclui.
Sendo uma tendência de mercado ou não, é interessante que o espaço mainstream dos jogos também esteja aberto para discussões tão importantes, como a saúde mental e o trato social, nos dias de hoje. Gamificar e tornar interativas estas experiências podem ser uma forma de gerar mais empatia e despertar nas pessoas a importância de ter um pouco mais de atenção a si próprio e aos demais à volta.
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