Até um passado recente, banco online era sinônimo de banco tradicional com internet banking. Hoje é diferente. Bancos que operam exclusivamente pela internet caíram na graça dos brasileiros e são acompanhados de perto por fintechs que oferecem contas ou carteiras digitais.
Se você não é cliente de um ou mais desses serviços, pelo menos já ouviu falar de alguns. E vai ouvir mais. Além de bancões, bancos digitais e fintechs, varejistas e até operadoras de telefonia estão entrando na briga pela guarda do seu dinheiro.
Mas, para onde iremos com essa disputa? Será que não vai faltar cliente para tanto banco ou carteira digital? Não existe resposta simples para essas perguntas. Mas adianto que os desdobramentos dessa história são muito interessantes.
Não é impressão sua. O número de bancos digitais ou contas oferecidas por fintechs disparou no Brasil, especialmente em 2020, e continua em ritmo forte.
Embora alguma movimentação no setor já fosse percebida anos antes, oficialmente, a escalada dos bancos digitais no Brasil teve início em abril de 2016, quando o Banco Central publicou a Resolução nº 4.480 para regulamentar a abertura e encerramento de contas nesse tipo de serviço.
Houve outras. Em janeiro de 2020, por exemplo, a Resolução nº 4.753 do Banco Central passou a valer e derrubou uma série de amarras do sistema bancário, entre elas, as regras que exigiam apresentação de documentos físicos (em papel) para abertura de contas.
Precisávamos de regulamentação? Bom, banco digital é diferente de banco digitalizado. Este último é uma instituição que inicia operações no modelo de agências físicas e, depois, passa a oferecer serviços na internet. Um banco digital nasce e permanece online, portanto, precisa de parâmetros e requisitos específicos para esse meio. A regulamentação proporciona isso.
Exemplos notáveis (mas não os únicos) de instituições que representam os novos tempos são os bancos Original e Inter. Ambos surgiram a partir de organizações que atuavam no mundo físico. O Original veio da fusão entre Banco JBS e o Banco Matone. O Inter começou como a financeira Intermedium na década de 1990, virou banco em 2008 e, nos anos seguintes, levou suas operações para o modelo digital.
A ascensão das alternativas aos bancos convencionais ganha força, pelas vias oficiais, a partir de 2018, quando o Banco Central liberou regulamentações que deram mais autonomia para as fintechs, empresas que nasceram para a internet.
Uma delas é a Resolução CMN n° 4.656, de abril de 2018, que permite que empresas do tipo atuem na oferta de crédito sem ter que depender de bancos ou financeiras para isso — até então, muitas dessas fintechs operavam apenas como correspondentes bancários.
Impulsionar fintechs de crédito foi apenas uma das várias medidas do Banco Central para atacar o problema da concentração bancária no Brasil. Mas, mesmo antes dessas ações, a presença de serviços financeiros controlados por empresas de tecnologia (e não necessariamente por bancos) já era forte no país, vide o exemplo de plataformas como PicPay, Mercado Pago e RecargaPay.
A partir deste ponto, os conceitos podem ficar confusos. Então, antes de prosseguirmos, vamos a alguns esclarecimentos.
Originalmente, tínhamos apenas o ideal de carteiras digitais. Não existe nenhuma definição clara sobre o que é carteira digital, mas podemos atribuir essa denominação aos serviços que intermedeiam pagamentos após o usuário cadastrar cartões de crédito ou débito.
É o caso de plataformas como Google Pay, Apple Pay e Samsung Pay. Sob essa óptica, PicPay, Mercado Pago e RecargaPay (e outros) também podem ser classificados como carteiras digitais, pois também permitem cadastro de cartões.
Porém, essas plataformas passaram a oferecer outros serviços financeiros com o passar do tempo. Essa evolução, por assim dizer, as fazem ser incluídas na categoria de contas de pagamento (o que não quer dizer que designá-las “carteiras digitais” seja errado).
De acordo com o Banco Central, uma conta de pagamento é aquela que pode ser usada para saques, transações por cartão de crédito ou débito, transferências e, claro, pagamento de contas (inclusive em estabelecimentos físicos, via QR Code, por exemplo).
Parece uma conta corrente, certo? Certo. Mas uma conta de pagamento costuma ter um processo de abertura mais simples, não pode ter seus recursos alocados para operações de crédito (o banco pode usar o dinheiro das contas correntes em empréstimos) e o mais importante: não precisa ser administrada por um banco.
Conta digital, por sua vez, é uma expressão generalista. Ela pode fazer referência tanto a serviços de bancos digitais quanto a carteiras ou contas de pagamento.
Como já ficou claro, o Banco Central tem adotado medidas para facilitar a atuação de fintechs em prol de uma competitividade maior no setor. Repare, como exemplo, que o Pix foi idealizado para incluir vários tipos de instituições no sistema, não somente bancos.
Junte esse a outros elementos, com o fato de grande parte da população brasileira ter celular, e temos um cenário que favorece o crescimento de plataformas que oferecem contas digitais.
2020 foi um ano excepcional nesse sentido, mas por um motivo indesejado: a pandemia de COVID-19. As ações de isolamento social levaram muita gente a recorrer a serviços financeiros online, especialmente no período entre março e abril daquele ano.
De acordo com uma análise da Comscore, o Brasil registrou um salto de quase 200% no acesso a bancos digitais em abril de 2020. A Caixa Econômica Federal foi o banco mais acessado via meios digitais no ano passado graças à busca pelo auxílio emergencial (aplicativo Caixa Tem) e o FGTS.
Ok, a pandemia serviu como um impulsionador anômalo, mas, antes disso, o uso de contas digitais já vinha em alta no Brasil e continua conquistando adeptos.
Prova disso é que, em conversa com o Tecnoblog, Eduardo Carneiro, diretor geral da Comscore no Brasil, destacou que, dos 20 serviços financeiros online mais acessados em março de 2021 no país, mais da metade corresponde a fintechs ou bancos digitais — a maior parte dos acessos foi feita via celular ou tablet.
Repare, na tabela anterior, que o Nubank é um fenômeno. Com 37 milhões de acesso em março de 2021, a fintech ficou atrás da Caixa, mas apareceu na frente do Itaú, Santander, Bradesco e Banco do Brasil. Mas isso não quer dizer que os bancos estão derrotados. Essas instituições têm reagido à nova realidade.
Eu acho que o crescimento dos bancos digitais continuará forte e acho que os bancos tradicionais estão voltando a ganhar espaço com iniciativas digitais e melhorias em seus produtos, o que vai gerar uma garantia de manutenção ou até um possível crescimento orgânico da base [de clientes] que eles têm hoje.
(…) Existe um esforço muito grande dos bancos tradicionais de seguirem os players digitais. (…) Esses bancos estão correndo atrás de facilidades que, para a geração Z [nascidos entre 1995 e 2010] e os millennials [nascidos entre 1980 e 1995], têm valor muito grande.
Eduardo Carneiro, diretor geral da ComScore
A reação dos “bancões” se dá não só pela modernização de suas plataformas, mas pela criação de negócios voltados especificamente a contas digitais. Reparou que Next (Bradesco) e Iti (Itaú) também aparecem no ranking da ComScore?
O segmento de contas digitais está tão aquecido que tem dado espaço para iniciativas focadas em públicos específicos. A Conta Black, por exemplo, foi criada com foco nos desbancarizados (público que não tem conta bancária) — o negócio surgiu a partir da frustração que o empreendedor Sérgio All sentiu após ter um pedido de crédito negado em um banco tradicional.
Já o Pride Bank é direcionado à comunidade LGBTI+, enquanto o Ekko Bank visa atender ao pequeno ou médio varejista.
Levemos em conta também que muitas fintechs iniciam a sua trajetória com serviços direcionados e, posteriormente, passam a oferecer contas digitais. É o caso da Grão, que surgiu focada em microinvestimentos, mas, desde fevereiro de 2021, oferece uma conta digital que inclui cartão de débito.
A fintech foi criada pelas mãos de ex-sócios da Rico Investimentos. Entre eles está Monica Saccarelli. Além de cofundadora, ela é CEO da Grão. Ao Tecnoblog, a empresária contou que a proposta da empresa é ajudar o cliente a formar uma reserva de emergência, mesmo que investindo pequenos valores, ou a atingir um objetivo, como dar entrada na compra de um apartamento.
Na Grão, a conta digital não descaracterizou a plataforma. Pelo contrário. Essa modalidade permite à fintech atender a um público maior pela possibilidade de incluir aqueles que não têm conta em banco, mas o faz sem desvincular o serviço ao propósito do investimento ou da formação de reserva financeira:
A conta digital estava nos nossos planos desde o início para facilitar esse poupar. Se eu recebo um salário ou uma renda para só depois eu investir, nesse tempo eu possa acabar gastando [esse dinheiro] ou esquecendo [de investir]. A prioridade às vezes não é essa.
Com a nossa conta digital você guarda [dinheiro] automaticamente. Quando você recebe um valor na conta da Grão, a gente te sugere um percentual para investir.
(…) A gente também é uma alternativa para quem quer ter uma conta poupança digital: você não paga [para ter a conta] e ainda poupa.
Monica Saccarelli, CEO da Grão
Saccarelli também revelou que a conta digital da Grão é baseada em uma plataforma de Banking as a Service (BaaS). Nesse modelo de operação, uma empresa oferece serviços financeiros por meio de uma estrutura fornecida por uma companhia especializada.
Há várias plataformas do tipo no Brasil, como Dock, Zipdin e Banking in a Box. Esses serviços têm ganhado espaço porque chegamos a uma fase em que contas digitais não se limitam mais a bancos, financeiras e fintechs.
Algumas empresas, como é o caso da Grão, utilizam o BaaS para otimizar seus produtos. Como esse tipo de plataforma já está pronto, a fintech pode dedicar esforços e recursos no atendimento ao cliente e no aprimoramento da experiência de uso de seu aplicativo, por exemplo.
Mas o BaaS tem cumprido principalmente a função de ajudar empresas que não são do setor financeiro a ingressar nesse meio. A marca da empresa está lá, mas, nos bastidores, uma plataforma especializada faz as engrenagens rodarem.
O efeito disso é o surgimento de contas digitais como Magalu, Vivo Pay, BanQi (Casas Bahia), Conta Digital iFood (MovilePay), Trucker Pay (Volkswagen Caminhões e Ônibus) e tantas outras — não dá para afirmar que todas elas são baseadas em BaaS, mas o conceito está por trás de boa parte dos negócios do tipo.
Bruno Diniz, líder da Financial Data & Technology Association (FDATA) na América Latina, comenta no Tecnocast 194 que vê a movimentação em torno do BaaS como uma forma de democratização na prestação de serviços financeiros, afinal, essas plataformas removem as barreiras de entrada no setor:
O Bank as a Service é mais um instrumento que tira essa dificuldade de acesso a entrantes no mercado. Muitas instituições, hoje, rodam dessa forma e provavelmente devem continuar rodando assim sem interesse em tirar uma licença para ser uma instituição regulada ou ter que arcar com toda a parte operacional, que acaba não virando core [negócio principal].
Bruno Diniz, líder da FDATA na América Latina
Se antes tínhamos que recorrer aos bancos tradicionais para guardar ou movimentar dinheiro, hoje, parece que sobra opções digitais para isso. Essa situação ativa o desconfiômetro: com tantas empresas criando contas digitais, será que não veremos uma “bolha” surgir nesse meio?
É claro que o risco nunca é zero, mas, de modo geral, há um otimismo no mercado sobre o crescimento desse segmento pela percepção de ainda haver muito espaço a ser explorado.
Monica Saccarelli, da Grão, destaca que, se analisarmos os balanços dos bancos tradicionais, veremos que o setor continua muito centralizado nessas instituições. A executiva lembra também que o Brasil ainda tem um número grande de desbancarizados.
Já Eduardo Carneiro, da ComScore, vê o risco como baixo por vários fatores, como a praticidade dos serviços “white label” (que se encaixam no conceito de BaaS).
O executivo entende que é difícil constituir um banco no Brasil (por conta das exigências regulatórias), mas que, por outro lado, uma empresa pode oferecer serviços financeiros mantidos por outras instituições e encontrar um leque de oportunidades ali sem ter que manter uma estrutura tecnológica complexa para isso.
Há outro ponto importante. Bruno Diniz observa que uma companhia que cria um banco ou carteira digital voltada ao seu ramo de atuação (é o caso da conta do iFood, direcionada a restaurantes) terá boas chances de fazer esse negócio prosperar, afinal, a companhia conhece os pormenores daquele segmento e pode oferecer produtos financeiros correspondentes.
Diante desses aspectos, fica difícil pensar em bolha. O fato é que o mercado financeiro está mudando. As instituições tradicionais continuam dominando a cena, mas não são mais os únicos protagonistas. E olha que esse é só o começo: pode ter certeza de que o open banking vai fazer essa transformação ser muito mais intensa.
Em 2020 o número de downloads dos apps de bancos digitais ultrapassou pela primeira vez o dos bancões. Mas, apesar do crescimento exponencial, essas empresas seguem dando prejuízo. Esse é o tema do Tecnocast 194, confira!
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